domingo, 29 de abril de 2007

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Um conto de...a la FIDS

Continuação do post de juanito, de 21 de Abril de 2007


CAPITULO VII


Mas Marta logo voltou a si. Era preciso combater vigorosamente essa atracção que sentia por aquela figura duvidosa. Quem era, pois, esse Pedro? Quem sabe se não passaria tudo, afinal, de uma mentira e Bernardo, esse homem desenxabido e previsível, tivesse sido forçado a escrever a nota medonha que havia lido. Era incoerente. Só havia uma explicação. Bernardo fora raptado por uma corja infâme de malfeitores dos quais esse tal de Pedro só podia ser um (reles) lacaio.


Se assim fosse estava em perigo. Esse tal fotógrafo só podia querer apanhá-la em flagrante e depois fazer chantagem. Nesse momento resolveu vestir a lingerie. Olhou-se ao espelho e gostou do que viu, mas ainda estava para aparecer o homem que iria usufruir daquela maravilha. Abriu a porta do quarto, de rompante, dizendo em voz estridente (semelhante aos gritos de uma arara) :


- Cuucoo, mádafâca, I'm but naked, I'm but naked, ahhhhh, ahhhhh


Tentou imitar o melhor que podia um caso extremo de sindrome de La Tourette, enquanto se dirigia para a porta da rua com passos firmes, não sem levar na mão esquerda, de forma disfarçada, uma pequena bolsa que continha o essencial dos seus documentos e dinheiro.


- Fuck it, fuck it, fuck it...


Pedro olhava para ela perplexo. Estava boquiaberto. Tinha uma Leica na mão que caiu (felizmente) em cima de uma almofada.


Chegada à rua, quase nem reparou que os transeuntes a olhavam surpreendidos, disfarçando o riso ou escandalizados. Encontrou um almeida que varria a rua com gritante desmazelo. Ao vê-la, a beata que segurava ao canto da boca, caiu. Só percebeu o que se passava quando Marta montou na sua vassoura e começou a correr pela rua gritando:


- Anda, cavalinho, anda....pócótó, pócótó....


quinta-feira, 26 de abril de 2007

O país da não-inscrição

Um filósofo português escreveu que Portugal é o país da "não inscrição", ou seja, "nada se inscreve - na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico".


O seu racíciocíno leva-o a considerar que o 25 de Abril "recusou" a inscrição, "no real", dos 48 anos de ditadura que o precederam. Não houve julgamentos de "Pides" nem de quaisquer outros responsáveis desse (antigo) regime.

Diz José Gil, e passo a citar:

"um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da Revolução pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida, a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um branco (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmo ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer. Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso".

José Gil, Portugal Hoje - O Medo de Existir

sábado, 21 de abril de 2007

Um Conto De...

[ Esta é a proposta de F.I.D.S. para o capítulo VI do conto colaborativo que está a ser construído em Um Conto De... ]



CAPÍTULO VI


A situação estava a começar a tornar-se incómoda para Marta. Não estava a perceber rigorosamente nada acerca da história do envelope fechado ou do “dossier confidencial” que ainda não tinha visto; não entendia o papel deste atraente homem Pedro (que parecia ser mais do que um simples mensageiro); estava, no mínimo, surpresa com a revelação de que Bernardo Teixeira não tinha voado para o Bangladesh – mas porquê mentir?!; estava cheia de fome – já era bem para lá da hora a que saía para almoçar; e tinha a reunião com os amigos de Setúbal, para lhes tratar do projecto, dali a menos de uma hora.

- Gosta de bacalhau com natas? – insistiu, uma segunda vez, o atraente Pedro.
- Ouça. – Marta tentou recuperar o controlo da situação, e pôr de lado a desconcentração que, era óbvio, o jovem provocava nela. – Não vou poder almoçar consigo. Às 14 horas tenho aqui pessoas à minha espera, vêm de Setúbal de propósito, e é o meu trabalho. Esperei até mais tarde por si, a pedido do Dr. Bernardo, para lhe entregar o envelope e receber o tal “dossier confidencial”. Não compreendo o que me está a dizer: que o Dr. Bernardo foi para Barcelona, que o conteúdo do dossier confidencial “é do meu interesse”... Gostava de perceber, mas tenho mesmo de sair porque senão não vou cá estar a tempo da minha reunião. – Marta surpreendeu-se a si própria por ter conseguido, aparentemente, quebrar o feitiço que aquele jovem de olhos verdes lhe tinha lançado desde que lhe abrira a porta.
- Esteja calma. – o jovem Pedro não alterou um bocadinho sequer o seu tom de voz calmo e quase paternal. – O Dr. Bernardo está a par de tudo – repetiu. – E as instruções dele são para que eu trate agora deste assunto consigo. E de facto, tem razão, não vai conseguir estar aqui às 14 horas. Porque agora temos de sair, eu tenho de falar consigo... Tem o envelope?

Marta, intrigadíssima, estendeu ao jovem o envelope amarelo, fechado, que havia retirado da gaveta da secretária de Bernardo Teixeira, minutos antes.

- Tem o dossier? – perguntou Marta, imaginando que, caso recebesse naquele instante o famoso “dossier confidencial”, toda aquela estranha intriga poderia ser dada como encerrada; teria feito o que o chefe lhe pedira, e ponto final.
- Dra. Marta, eu sei que esta situação pode parecer estranha, mas estou aqui neste momento porque o Bernardo assim o deseja. Por favor, não se preocupe, e venha comigo. Temos de sair. Cancele os seus compromissos do início da tarde. Tem de vir comigo, por instruções do Bernardo. – insistiu.
- Mas... quem é o senhor? Conhece o Dr. Bernardo Teixeira? É que eu estava à espera de tratar de uma simples entrega, mas não estou a perceber bem o que...
- Eu vou explicar-lhe, mas não aqui. Já lhe pedi, venha comigo, temos de sair. E aproveitamos ainda não ter comido, comemos qualquer coisa. Por favor, venha, e não se preocupe.

Marta começava a não ver nada à sua frente, entre a incompreensão de toda aquela situação, a “mentira” (?) de Bernardo Teixeira, os olhos verdes daquele rapaz atlético e a fome que lhe começava a apertar o estômago. Decidiu aceitar que Pedro era de facto um mensageiro de Bernardo Teixeira, e que ir com ele, obedecendo, era trabalho. Interrompeu Verónica, que continuava ao telefone, e em quatro frases secas explicou-lhe que tinha de sair com uma pessoa enviada por Bernardo Teixeira, e que não iria poder atender os seus amigos de Setúbal às 14 horas. Verónica teria de o fazer, pelo que Marta lhe entregou o dossier do processo em questão, por cima da secretária. Verónica não percebeu bem, e ficou visivelmente irritada quando realizou qual o tempo que teria para acabar a chamada telefónica, almoçar, e estar de volta a tempo de receber as pessoas.

- Desculpa, mas é que eu também não sei do que se trata! – desculpou-se Marta, à medida que vestia o casaco e punha a carteira ao ombro, para sair. O jovem Pedro já se encontrava à espera, à porta do elevador.

Pedro e Marta saíram do edifício de escritórios e percorreram a pé dois quarteirões até ao carro de Pedro.

- Vamos almoçar a um hotel. – informou o jovem - É lá que está o dossier do Bernardo. – disse para Marta ao mesmo tempo que destrancava o Porsche Cayman azul metalizado, fazendo sinal a Marta para que entrasse. O carro impressionou-a, mas Marta não deixou fugir qualquer sinal de admiração ou surpresa.

Aquela confiança no modo como Pedro se referia a Bernardo Teixeira intrigava bastante Marta, que achava aquele tratamento – “o Bernardo isto... o Bernardo aquilo” – de uma proximidade inusitada. Marta conhecia Bernardo desde a faculdade, tinham sido amigos desde essa altura, trabalhava com ele havia 8 anos e jamais tinha ouvido Bernardo sequer mencionar um qualquer Pedro Madureira.

- Conhece então pessoalmente o Dr. Bernardo Teixeira... – Marta procurou parecer casual, mas na realidade começara a sentir uma certa urgência em entender toda aquela situação, todo aquele segredo, toda aquela circunstância bizarra...
- Oh sim, claro... – Pedro desviou o olhar da estrada e sorriu a Marta, um sorriso que a fez recordar-se do que era o sentimento de atracção física entre adolescentes colegas de escola... Havia muito tempo que esse súbito acordar simultâneo de todos os pelos dos braços havia caído no esquecimento de Marta... Mas naquele momento a sensação era tão fresca como tinha sido na altura em que tinha 15 anos. – Já nos conhecemos há bastante tempo, há bastante tempo... já fiz vários trabalhos para o Bernardo.

“Trabalhos?” interrogou-se Marta. Naquele momento temeu que Bernardo Teixeira estivesse envolvido em alguma coisa de menos recomendável. Uma vigarice?, questionava-se... Uma vigarice em que ele, Bernardo, estivesse agora a envolvê-la? Marta não queria acreditar na hipótese... Conhecera Bernardo aos 18 ou 19 anos, tinham sido colegas de faculdade, tinham ficado amigos, trabalhava com ele havia 8 anos e tinha dele, até hoje, uma imagem de total e absoluta honestidade. A integridade de Bernardo era uma certeza para Marta... Mas toda aquela história, aquele mistério, aquele envelope, aquele rapaz de olhos verdes que a perturbava, aquele Porsche, aquele seu quase “rapto” do emprego... eram demais. E o dossier? E o “dossier confidencial”? O que era? E o que tinha Marta a ver com ele?!

Até chegarem ao destino, Marta optou pelo silêncio. Decidiu interiormente que não corria perigo. E era adulta e controlada, pelo que ao sinal de qualquer situação menos correcta ou mais duvidosa, saberia como se desenvencilhar. E se necessário fosse, saberia também como montar uma cena desagradável em público. De qualquer forma, aquele jovem que estava com ela suscitava-lhe tudo menos hostilidade. Era atraente, mexia com ela, parecia bastante meigo e tinha um sorriso de derreter qualquer mulher. Porque haveria de pensar logo no pior à partida? Quem sabe se conhecer aquele rapaz não seria uma daquelas coisas boas de que há tanto tempo estava à espera na sua vida?

Chegados a um hotel com muito bom aspecto situado fora do centro de Lisboa, Pedro entregou sem pensar as chaves do Cayman ao empregado que aguardava em frente à entrada principal, e que o saudou com cortesia. Com a mão na base das costas de Marta, Pedro conduziu-a com gentileza ao restaurante do hotel, bem ao fundo do grande e bem iluminado hall de entrada. Já sentados, foram atendidos de forma absolutamente irrepreensível e tratados como se fossem clientes bem conhecidos. Marta sentia-se progressivamente mais à-vontade, e começara a desejar que aquele fosse o modelo da sua tarde típica... o envelope, o ter sido arrancada do trabalho sem ainda perceber bem porquê, o malfadado “dossier confidencial”, o mistério da mentira de Bernardo ao ter viajado para Barcelona, em vez de ter ido à conferência... bem vistas as coisas, tudo haveria de ser entendido, sem necessidade de enervações. O rapaz que estava à sua frente poderia bem ser o seu próximo namorado. Porque não?

O fabuloso vinho tinto que Pedro tinha pedido, sem necessidade de ver a carta, também ajudou bastante a toda aquela descontracção progressiva de Marta. Ambos beberam dois copos sem qualquer dificuldade, antes mesmo de o prato principal ter chegado à mesa. Marta não estava habituada a beber.

A refeição decorreu sem necessidade de grandes conversas entre Marta e Pedro, que preenchiam o silêncio com sorrisos de um para o outro, entrecortados por breves risinhos de Marta, que entre o efeito mágico do vinho, o sabor agradável do prato de caça que Pedro havia pedido permissão para escolher para os dois, e a visão daquele rapaz de sonho à sua frente, parecia como que hipnotizada. Perto do final do prato, Pedro retirou do casaco o envelope amarelo fechado que Marta lhe havia entregue. Quando fez menção de o abrir, a atenção de Marta redobrou-se, e ela ficou mais séria, por baixo das suaves rosetas que o vinho tinto lhe havia trazido à face.

Sem grande encenação ou mistério, Pedro abriu o envelope para, de dentro dele, retirar dois envelopes brancos separados, um maior que o outro.

- Este é para si. – sorriu, enquanto estendeu o envelope mais pequeno a Marta.

Marta pousou o copo de vinho com uma certa brusquidão na toalha branca da mesa e tomou o envelope da mão de Pedro com um solavanco. Deixou-se rir. Pedro sorriu-lhe em retribuição.

O envelope branco mais pequeno tinha “Marta”, manuscrito a caneta de tinta permanente numa caligrafia harmoniosa. Marta reconheceu a letra de Bernardo Teixeira sem dificuldade. Abriu o envelope e retirou uma pequena folha de papel, também ela manuscrita:


Querida Marta,

Quero que a partir de agora as coisas sejam diferentes.
Este homem é um amigo, não tenhas a menor preocupação.
Encontrar-nos-emos em breve.

B.


Marta deixou sair uma pequenina gargalhada de nervos, que não conseguiu conter. Pedro, contudo, não reparou, ocupado que estava a contar as notas de 50 Euros que não chegou a retirar inteiramente do envelope que lhe foi destinado. Marta estava estarrecida com aquela nota de Bernardo. “Querida Marta”?! E a dirigir-se a ela por “tu”?! Não se haviam tratado por tu desde a faculdade, Bernardo insistira para que assim fosse a partir do momento em que haviam começado a trabalhar juntos, e assim havia sido durante 8 anos!... E “querida Marta”?! Nem no tempo da faculdade se havia Bernardo dirigido a Marta dessa forma!... “Encontrar-nos-emos em breve”? Porque raio?!...

- Ouça – disse Marta a Pedro, que entretanto já tinha contado o dinheiro -, é nesta altura que o Pedro me vai explicar esta história toda. Tenho aqui uma nota do Dr. Bernardo a dizer-me para confiar em si, e a dizer-me que o encontrarei em breve. Importa-se de me explicar o que tudo isto quer dizer?!
- Ah sim, o Bernardo quer que a Mar... a Dra. Marta vá ter com ele a Barcelona. – Pedro estendeu a Marta um bilhete de avião, com data do dia seguinte, que retirou também do interior do envelope amarelo.
- A Barcelona?! – estranhou Marta – Mas fazer o quê? Porque é que o... Bernardo não me disse nada? Porque é que não falou comigo? Porque é que eu tenho de ir a Barcelona?

Ambos já tinham acabado a refeição e Pedro já começara a levantar-se, sempre sorridente para Marta. Deixara em cima da mesa duas notas de 50 Euros retiradas das que estavam dentro do seu envelope, e fazia menção no sentido de que Marta o acompanhasse para saírem do restaurante.

- O Bernardo quer estar consigo. Mas tem um outro pedido para lhe fazer antes, e é aí que eu entro. Peço desculpa, mas é melhor irmos subindo, porque o tempo não dá para tudo, e começa a ficar um bocadinho apertado.
- Subir para onde? Tempo apertado para quê? O que precisamos de fazer? – Marta estava de novo mais impaciente e nervosa.
- Subir ao estúdio – informou Pedro, sorrindo mais uma vez com todo o brilho dos seus olhos verdes para Marta, que se sentiu de novo vulnerável. – Tenho lá a encomenda que o Bernardo me pediu que lhe entregasse.
- Ah, o tal dossier? – Marta estava já um pouco exausta de tanto tentar compreender toda aquela situação. Pedro pareceu não ter ligado à sua pergunta.
- Achei melhor assim, levar-lhe ao emprego poderia não ser muito... próprio. O Bernardo nem sempre pensa nessas coisas. O estúdio é já ali – Pedro apontou, no corredor, para a porta de uma suite, que depois abriu ao girar de uma chave branca. Os dois entraram.

O estúdio tinha uma sala principal que se revelou à medida que Pedro ia acendendo as fortes luzes brancas espalhadas por todo o lado. No espaço principal, um set fotográfico era cercado por vários holofotes de luz indirecta, de pé alto. Diverso equipamento de fotografia estava espalhado pela sala. Marta olhava em redor, com total admiração e falta de compreensão.

- Mas o Pedro é...
- Fotógrafo. – atalhou o jovem – Quero dizer, também sou advogado, mas antes de ser advogado, já era fotógrafo. – Sorriu mais uma vez para Marta, enquanto deslocava uma caixa do chão, com um ar aparentemente pesado. - A encomenda do Bernardo para si está nessa salinha. – e apontou para uma porta branca que se desenhava na parede à esquerda da porta de entrada do estúdio.

Nisto, o telemóvel de Pedro soou com uma música sonora e alegre, ao que o jovem fez menção de descobrir em que bolso do casaco havia metido o aparelho. Pediu desculpas a Marta, e atendeu a chamada num inglês não muito perfeito.

- Dra. Marta – disse Pedro, tapando o telefone com a mão por um momento – pode ir entrando, e diga-me quando estiver pronta, vá ficando à vontade... – Pedro apontou para a porta da salinha e regressou rapidamente à chamada que tinha interrompido no telefone.

Marta não quis perder mais tempo, nem interrogar mais ninguém, e dirigiu-se à porta da salinha onde estaria o famoso “dossier confidencial”, “encomenda”, ou lá o que fosse. Era uma salinha pequena, de decoração pobre, com um sofá, um espelho de parede sobre uma cómoda com alguns produtos de maquilhagem, cabides na parede, uma pequena mesa e um minibar que emitia um leve zumbido, ligado à corrente. Sobre a mesa, um embrulho com cerca de 60 cm de altura e menos de 20 cm de espessura despertou de imediato a atenção de Marta. Era o famoso “dossier confidencial” sobre o qual Bernardo Teixeira havia falado a Marta, a partir do aeroporto, alertando-a para o facto de o dever receber das mãos de um tal “Pedro”, coisa que Bernardo tinha feito numa voz comprometida e muito mais hesitante do que lhe era característico.

Marta ainda hesitou sobre esperar ou não que Pedro terminasse a sua chamada para confirmar que o embrulho era, por fim, o “dossier” que lhe era destinado, antes de o abrir. Mas logo se decidiu a abri-lo, constatando através da porta que Pedro continuava em animada conversa em inglês duvidoso com fosse quem fosse que lhe havia telefonado. Cansada do mistério, abriu o embrulho sem cerimónias – qual dossier, qual carapuça – para revelar duas caixas impecáveis de um cartão cinzento com uma belíssima apresentação. Colocou as caixas rectangulares lado a lado, sobre a mesinha. Ambas eram parcas em decoração, apresentando apenas duas palavras sobre a tampa, escritas a vermelho, numa caligrafia sedutora:

Unspeakable Secret

Marta abriu as duas tampas em simultâneo, para que se revelassem, no interior das caixas, dois bodies de lingerie da mais fina apresentação, um branco e um preto. Cuidadosamente preso por um alfinete ao body de cor preta, estava (mais) uma pequena folha de papel manuscrita por Bernardo Teixeira:

Faz isto por mim.
Descansa, quanto ao Pedro. Ele é um profissional em quem confio em absoluto.

B.


- Este homem é louco! – balbuciou Marta, em voz alta. – Não queria acreditar que estas notas, estes recadinhos, eram do mesmo homem que de há 8 anos àquela parte havia desempenhado o papel do seu formal, distante, rigoroso, respeitador e 13 anos mais velho... chefe! Não, não podia ser! Era uma brincadeira...

Sem saber se rir era ou não adequado àquela situação, e com um acesso de nervos visível, Marta vagueou desajeitadamente em direcção ao minibar, de onde retirou com decisão uma garrafinha de Martini Rosso, que abriu e levou aos lábios com rapidez. Bebeu um golo grande, talvez um terço da pequena garrafa. Engoliu o vermute com uma careta.

Marta passou os minutos que se seguiram sentada no sofá, com os bodies de lingerie à sua frente, nas caixas abertas. Em menos de dois minutos acabou a garrafinha de Martini, o que fez com que o efeito do fabuloso vinho tinto que tinha bebido ao almoço parecesse como que ressuscitar.

Não sabia o que pensar de Bernardo Teixeira naquele momento. Aquele homem não era quem aparentava ser, isso estava provado. Jamais Bernardo havia esboçado qualquer tentativa de aproximação física a Marta! Jamais tinha existido a mais leve insinuação! Será que Marta poderia ter sido tão distraída ao ponto de não perceber? Não!, Bernardo nunca tinha dado a entender interesse físico por Marta!

O que sentia Marta naquele momento?, interrogava-se... Nojo de Bernardo? Não sabia bem... era demais para um dia só... toda aquela história, desde o telefonema de Bernardo para o escritório, tinha sido demais!... E a lata dele!, ainda tinha esboçado uma leve crítica pelo facto de Marta não ter atendido o telemóvel... Pelo facto de ela não ter estado disponível em hora de trabalho! A lata!... Ao mesmo tempo que falava com ela sabia que lhe ia mandar lingerie e pedir-lhe que posasse para um fotógrafo! Mas quem é este homem, afinal?!, perguntava-se Marta, completamente incrédula... E manda-me um bilhete de avião para ir ter com ele a Barcelona, quando tem toda a gente enganada no escritório!!!... Não queria acreditar que isto acontecesse com ela, com o Bernardo!, que tão bem conhecia... ou julgava conhecer! Riu-se de nervos ao pensar que tinha equacionado a hipótese de Bernardo a querer envolver num negócio escuro qualquer, numa vigarice, com esta história do Pedro, e do “dossier confidencial”... Bernardo não era vigarista, Bernardo estava EXCITADO!... E logo haveria de ser com ela!!

Mas Marta tinha um problema. Aquela sensação, que tinha tido antes, dentro do carro, de que saberia lidar com decisão e de forma irrepreensível no caso de uma qualquer circunstância mais duvidosa se vir a revelar com o desenrolar da história, estava mais... diluída. A resolução de Marta, aquilo que até há pouco tinha a certeza de conhecer acerca de si própria... Estava tudo ligeiramente... enevoado... O seu critério de julgamento estava turvado pela atracção inegável que sentia por aquele rapaz, Pedro, e que lhe parecia ser, de algum modo, retribuída da parte dele. O seu discernimento estava perturbado pela excitação que aquela tarde tinha trazido à sua rotina monótona, por sensações das quais há muito não se lembrava, e ainda por uma boa quantidade de álcool... Aquele vinho do almoço era qualquer coisa!... Aquele rapaz era qualquer coisa... Aqueles olhos verdes eram qualquer coisa...

Levantou da caixa o body branco, que se desdobrou automaticamente. Deixou-se rir, por imaginar por um momento como ficaria vestida só com aquilo. Examinou com ar de troça as copas do peito e a zona do baixo ventre. Soltou outra gargalhada curta, ao constatar que tudo era quase totalmente transparente.

- Não querias mais nada! – exclamou em voz baixa, como se Bernardo estivesse na sala.

Pela primeira vez, Marta considerou que a actuação de Bernardo era ridícula e imprópria de um homem. Jamais voltaria a olhar para ele da mesma maneira. Por um momento, um assomo de seriedade invadiu-a, à medida que pensou pela primeira vez nas consequências que esta história teria na sua vida profissional... E com toda a certeza haveria enormes consequências... Mas não se deteve mais do que breves segundos a pensar nesse assunto. Pedro estava na sala ao lado – Marta continuava a ouvi-lo ao telefone -, e aquele jovem de olhos verdes e sorriso encantador atraía-a de uma forma que era difícil negar... E Marta já nem o queria negar... Acresce que os acontecimentos daquela tarde tinham-na levado a uma circunstância em que tinha à frente duas peças de roupa íntima do mais provocante que tinha visto na vida, e que era suposto vestir para, de seguida, ser fotografada por – precisamente! - aquele rapaz por quem Marta se sentia a derreter aos poucos... Bernardo Teixeira era uma questão a resolver, mas... Aquele Pedro poderia ser um assunto à parte...

- Marta, tu tem mas é juízo!... – advertiu a si própria, mas num tom pouco convincente.

Na sala principal do estúdio, Pedro parecia estar a terminar finalmente a chamada telefónica. Marta levantou-se e fechou a porta da salinha. Sentiu-se, naquele momento, subitamente envergonhada.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Mas será que só nos restam as fugas para a frente?

Provavelmente não. Restam-nos algum mimos que podemos ir dando a nós próprias e que nos vão ajudando a sobreviver. Parece-me que é importante agir por impulso, nem que seja uma vez na vida. A sabedoria chinesa diz que mais vale ser tigre por um dia que cordeiro a vida toda. Sejamos tigres por um momento. Não sei em relação a quê, nem quando, nem onde. Mas não desistamos de ter o nosso momento de glória.

Não esqueçamos o prazer de uma boa jantarada de marisco numa qualquer "marisqueira dos pobres", de um bom cozido à portuguesa ou de um belo bacalhau assado com batatas a murro e com grelos. Até me sinto a salivar com o aroma que rescende...na minha imaginação.

E andar a pé. Já repararam como é fácil e barato? É um ginásio ao alcance de qualquer bolsa. Descer e subir ruas e escadas são boas alternativas. E será tanto mais eficaz quanto mais sejamos capazes de encontrar prazer em fazê-lo. Ultimamente tenho sido capaz de andar treze quilómetros em duas horas, acompanhada de uma diversificada playlist, aos fins-de-semana.

Isto faz-me pensar na importância de encontrarmos algo que verdadeiramente gostemos de fazer. Algo em que sejamos boas, algo que nos interesse e que nos reconforte pelo facto de a fazermos bem. Pode ser conversar, pode ser ler, pode ser escrever, pode ser tocar um instrumento musical. Podemos ser tigres por um dia se de repente resolvermos experimentar algo de que já tínhamos desistido ou algo que nunca tínhamos tido a coragem de experimentar.